Contos e Crônicas


Confessionário

Há tanto tempo não entro em um confessionário. Mas hoje foi necessário, vim para me abrir, talvez aqui eu encontre o sigilo que preciso, pois não tenho mais ninguém em quem possa confiar meus segredos.
            Perdi a confiança em todas as pessoas que me cercavam, fui golpeado sorrateiramente por todos eles. A pessoa que eu mais amei me traiu com o primeiro galanteador que lhe disse coisas bonitas ao ouvido. No momento de justificar-se respondeu com um “fui fraca!”; belas palavras para quem fazia tantas juras de amor. Concorda? E agora o que faço com tanto ódio?
            Bem, não pára por aí. Os que se diziam meus amigos foram me traindo um a um, até que não aguentei mais e com o último que me apunhalou disse um bom bocado de palavrões. Acredita que o acolhia em minha casa e o sem-caráter cantava minha mulher? Já tinha perdoado uma vez pelo mesmo erro, na segunda tive vontade de apanhar uma faca bem afiada e cortar-lhe as vergonhas para ver se tomava jeito. Injuriar alguém é errado, mas foi preciso, espero que entenda a situação e não me julgue por isso.
            Familiares... esses são difíceis... não tem como dizer que sejam ex-irmão, ex-pai, ex-filho. Nunca dão sinal de vida, quando resolvem aparecer é para trazer problemas. Isso quando não nos ofendem e tem que se ouvir do próprio filho as palavras “te odeio”.
            Tudo isso que têm acontecido nos últimos tempos me deixam cada vez mais fechado a tudo. Não consigo mais confiar em ninguém, muito menos apaixonar-me. Lancei-me a olhar para o nada e andar cabisbaixo. Algumas pessoas perguntam por onde anda meu sorriso e não sei responder. O álcool tem sido meu refúgio, estou bebendo diariamente. Abandonei meus livros e passei a dedicar meu tempo à bebida. Estou com medo de estar tornando-me alcoolotra, pois, já acordo pensando em beber. Depois de tanto julgar quem recorria a isso para esquecer seus próprios problemas, hoje consigo entendê-los. Quantos estragos os infortúnios podem causar na vida de uma pessoa. Por mais forte que ela seja um dia sua estrutura não aguenta mais e pode ruir.
            Eis porque estou aqui hoje. Tomara que nesse confessionário possa encontrar um pouco de paz e orientação. Espero que o Senhor Padre não seja tão traiçoeiro quanto às pessoas que conheci e que guarde consigo meus segredos.
            Lá vem ele.
            - Bom dia Padre!
            - Bom dia meu filho! Em que posso lhe ajudar?
            - Padre eu pequei e gostaria de confessar-me!
            - Pois bem! Diga-me o que aconteceu.
            - Nada demais Padre. É que andei cometendo uns exageros com bebidas e sexo e gostaria de alcançar o perdão divino.
            - Tudo bem meu filho. Deus lhe perdoará, reze um terço como penitência.
            - Obrigado Padre!

            - Vá em paz meu filho!

Milagres?

            Naquele tempo o homem cansado da vida monótona de carpinteiro resolveu sair em peregrinação pelas terras de seu país. Caminhava sem rumo e sem pressa. Observava detalhadamente as coisas do mundo, a relação entre as pessoas, a simbiose da natureza e tudo que lhe passava diante dos olhos.
            Certo dia chegou às margens de um rio e sentou-se para observar dois pescadores que jogavam insistentemente suas redes de pesca nas águas do rio e que, recolhida após recolhida, nada pescavam. Foi então que o homem avistou de longe um bando de pássaros que se alimentavam de peixes e que, normalmente, sobrevoavam cardumes em busca de alimentos. Então o homem gritou aos pescadores: “joguem suas redes novamente no rio.” E apontou o local em que eles deveriam lançar suas redes.
            Os dois pescadores jogaram as redes no local indicado e, quando as recolheram novamente, ficaram emocionados com tamanha fartura de peixes que tinham pego. Encheram o pequeno barco com os pescados e voltaram a terra.
            Quando aportaram, a população faminta achegou-se ao barco. E os dois homens gritavam: “Milagre! Milagre! Este homem é um santo.” E apontavam o homem que lhes indicara o local onde se encontrava o cardume.


A Debutante

Era seu grande dia. A aniversariante acordou por volta das nove horas da manhã, havia um buquê de flores que seus pais haviam deixado ao lado da sua cama, entre as flores um cartão como os dizeres: Parabéns filha! Hoje é seu grande dia, aproveite cada instante. Beijos! Papai e Mamãe. A agora mulher sorriu sozinha, sorriu pela alegria da carta de alforria que acabara de receber dos pais.
            Levantou-se então, seu dia seria corrido até a grande festa que a esperava logo à noite. Tomou um longo e demorado banho de banheira. Na água pétalas de rosas vermelhas e sais de banho. Desceu as escadas e encontrou a empregada a esperando com uma mesa fartíssima de café da manhã. Aconchegou-se diante do banquete e comeu delicadamente algumas frutas, bebeu um copo de suco e desprezou o outro montante de iguarias que foram colocados ali para ela.
            Em seguida o motorista se apresentou pronto para leva-la ao salão de beleza. Passaria boa parte do dia nele. Ganharia massagens, esfoliações, hidratações, penteados, pés e mãos cuidados e por fim a visita da costureira que levaria até ela o fabuloso vestido de debutante.
            Já era tarde quando retornou no carro com o motorista para sua casa, era só para pegar algumas joias que usaria durante a festa. No trajeto do salão até sua casa, muitas ligações de parabenização pela data, inclusive do namorado. Não se sabe o conteúdo da conversa entre eles, mas ela estava extremamente excitada quando desligou o telefone. Puxou conversa com o motorista, quis saber o que um homem gostava de receber em carícias de uma mulher. O motorista, homem charmoso, com aproximadamente trinta e cinco anos, não se sentia à vontade para travar esse diálogo com a jovem, então, desconversou. Ela sabia que ele teria receio de falar sobre esses assuntos. Ela continuou a insistir e deixou claro a ele que aquela conversa seria um segredo entre os dois, foi quando ele resolveu falar e contou a ela o quanto um homem gosta de sexo oral.  A mente de garota se encheu de fantasias. Eles chegaram na casa, já não havia mais ninguém, todos tinham ido para o salão onde aconteceria a festa. A jovem pediu ao motorista que ajudasse ela com o vestido para que o mesmo não arrastasse no chão. Subiram até o quarto dela. Ela se adornou com as joias. Quando se preparava para descer e quando o motorista se aproximou dela para segurar o longo vestido, a garota empurrou-o contra a parede, ajoelhou diante dele, puxou o zíper da calça dele deixando que a veste caísse e exibisse o pênis que já se encontrava em riste. Ela começou a felação. O motorista atônito deliciou-se naqueles momentos de prazer intenso até que a ejaculação viesse e enchesse a boca da aniversariante. Ela com um olhar malicioso engoliu o sêmem dele, levantou-se lentamente e encostando a boca ao ouvido do motorista perguntou se era daquele jeito que homens gostavam. Ele respondeu que sim com a cabeça. Ambos ajustaram suas roupas e a garota novamente repetiu que aquilo morreria ali. Ele novamente concordou com a cabeça. Tomaram o caminho da festa.
            Quando chegaram ao salão todos se levantaram para recebe-la. A banda cara contratada pelo pai parou de cantar e um orador passou a elogiar a debutante, todas as formalidades foram feitas, valsas dançadas, presentes dados, felicitações dadas a todo instante. A agora mulher encontrou a melhor amiga, perguntou no ouvido dela se ela havia trazido o combinado, a amiga respondeu que sim e as duas saíram disfarçadamente e foram até o banheiro. No sanitário trancaram-se juntas, a amiga tirou do bolso a cocaína que comprara a pedido da aniversariante. Fizeram duas carreiras na tampo do vaso sanitário, primeiro dona da festa cheirou fortemente o pó, depois a amiga, em segundos começaram a rir, riam muito, o riso virou extase, as duas se olharam, se aproximaram, se beijaram intensamente. Ambas se tocaram, sentiam mutuamente o sexo molhado uma da outra, permaneceram ali por alguns minutos até que, ofegantes, foram se afastando. Riram novamente uma a outra. Abriram a porta e correram para festa.
            Na pista de dança encontrou o namorado. Se beijaram. Ela segurou na mão dele e arrastou-o para um camarim que era reservado a ela. Começaram a se beijar, como fez com o motorista, fez também no namorado, mas antes que ele ejaculasse na boca dela, a mesma se levantou, ergueu o vestido e retirou a calcinha, encostou as mãos na parede e rebitou a bunda, ele sem pensar a segurou pelo quadril, penetrou nela estocando-a fortemente com seu pênis. Entre gemidos ela gritou a ele que queria que a penetrasse no ânus. Ele estava ali para realizar o desejo dela. Sem experiência e aproveitando da euforia que a droga tinha causado nela, pouco se importou com a lubrificação, colocou seu membro sexual em direção ao ânus da jovem e num empurrão só o penetrou. O grito dela foi suprimido pelo som da banda, ninguém ouviu. Ela, mesmo sentindo dor, preferiu deixar que o ato continuasse.
            Quando o namorado terminou, a garota puxou uma toalha que estava sobre o sofá do camarim, limpou aquela mistura de sêmem e sangue que lhe escorria pelas pernas, jogou a toalha no lixo, olhou o seu amante e beijou-o intensamente. Sem nada a dizer um ao outro voltaram para a festa.
            Ela dançou muito, beijou muito, bebeu muito e quando o efeito da cocaína parecia estar acabando alguém lhe deu um comprimido e disse que era para aumentar a excitação. Quando ela foi colocar na boca seus pais apareceram, ela escondeu entre os dedos. Os pais beijaram-lhe a testa, tinham vindo se despedir, já era tarde e estavam cansados. Disseram a ela que aproveitasse, que aquilo era tudo dela e a mesma deveria curtir a cada instante. Ela sorriu. Os pais se viraram e ela lançou o comprimido na boca.
            A festa tornou-se intensa demais depois daquele comprimido. O namorado também havia provado, alguns amigos também. Todos dançavam feitos loucos, se roçavam, se encostavam. Tudo parecia bom demais, mas a festa já não tinha mais como acomodar aqueles amigos que dividiam a mesma sensação. Alguém teve a ideia de pegaram algumas garrafas de uísque no bar e irem para um lugar mais reservado. Eram doze no total que dividiam a mesma sensação, ela e o namorado, duas amigas e mais oito amigos. Todos consentiram. Chamaram táxis e pediram que os deixassem no motel mais caro da cidade, na portaria da hospedagem pediram a suíte mais luxuosa. Entraram. Uma música eletrônica foi ligada. Todos bebiam uísque e mais alguém tinha cocaína. Cheiraram. Ninguém mais raciocinava, era deixar rolar, o calor foi tomando conta e algumas peças de roupas foram tiradas. Ela começou a flertar com o namorado e começaram a transar na frente dos amigos, alguém a tocou, o namorado não se importou. Mais um toque, outra mão, outra menina nua, meninos nus com seus pênis duros. O bacanal começou e parecia que não teria mais fim. Transaram por muito tempo, até se esgotarem.
            Quando a droga acabou e o uísque também eles perceberam que era hora de ir embora. Chamaram táxis novamente e cada qual foi deixado em sua casa. Ela, já em casa, tomou um banho e deitou-se.
            Por volta das onze horas da manhã os pais dela entraram no quarto, acordaram-na com beijos na testa. Ela ainda de ressaca sorriu, pai e mãe retribuíram o sorriso a filha que enfim tornara-se uma mulher.
            
            


Desmedidas do coração
  
Um homem caminha dentre a multidão. Sozinho em seus pensamentos. No turbilhão de sons que o rodeiam, o silêncio em sua mente é a única coisa que ele ouve.
            Com o seu eu amargurado trava um debate sem palavras: o coração tem desmedidas para julgar fatos amorosos. Qual usar agora? Ele não para de caminhar. As mil faces que cruzam seu caminho não tem identidade, tampouco ele quer saber se têm. Não tem onde chegar. Não tem hora para chegar. Ele quer decidir e a caminhada se torna longa.
            Quão doída é a revelação dos olhos. Quantas coisas uma alma gêmea pode esconder. São os empecilhos do amor que tapam os sentidos de quem ama. E a outra parte, apodera-se do ópio do amor e gira inquieta o olhar ao redor, o que busca? Estava ali, diante do homem que agora caminha no seu mundo vazio.
            Nem toda boca é leal. Nem toda palavra solta ao vento convence. Os olhos falam mais que qualquer boca. E o homem não consegue julgar. Não quer acreditar nos olhos. Prefere acreditar na boca. E não sabe se tomou a decisão certa.
             Então ele parece caminhar ao infinito dos seus dias mundanos. Ainda nos seus vagos vazios dos pensamentos sabe que vai conviver dias de incertezas. Dias de desconfiança. Dias de juras falsas ou verdadeiras, verdadeiras ou falsas.
            No trajeto que caminha sem destino, só tem uma certeza: o coração tem desmedidas para o amor. 


Uma Aula de Literatura

            Último semestre do curso de Letras. Tragédia Brasileira de Manuel Bandeira em análise. Professora Doutora faz a leitura do conto, explana sobre o mesmo, fala do perfil de Misael, fala do caráter de Maria Elvira. Em seguida abre espaço para os acadêmicos que assistem à aula debaterem sobre o texto.
            Empolgada com a estória, uma acadêmica (astronauta) pede a vez da palavra:
            _ Professora! Professora! A leitura desse conto fez-me lembrar da minha mãe.
            Risos e gargalhadas tomaram conta da sala. Professora mal podia controlar a crise de risos que teve. Mas antes que a algazarra da sala tivesse fim e a pobre infeliz da menina pudesse se explicar, ocorreu mais uma diarreia mental. Outra acadêmica (desinformada) manifestou-se:
            _ Professora! Misael era empregado da fazenda ou o dono dela?
            Desta vez a professora não riu. Fechou seu semblante com um ar de decepção. Olhou rapidamente as horas no seu relógio de pulso e esbravejou cansada:
            _ Vamos ao intervalo.



Cuide do seu jardim


            Era uma vez, um homem muito prestativo. Não se importava em deixar seus afazeres em prol de outras pessoas. Sempre pronto a ajudar, não aguardava ser chamado, fazia logo sua boa ação e, na grande maioria das vezes, não recebia nem um mero agradecimento pelos atos praticados.
 Morava na Rua dos Jardins, a rua recebia esse nome devido à beleza incomum de todos os Jardins das casas que ali se localizavam. Circulando pela orquestra floral estavam inúmeros beija-flores, milhares de borboletas, colmeias inteiras de abelhas e, para vislumbrar tudo isso, centenas de pessoas que se deslocavam diariamente de suas casas para admirar essa bela rua. Porém, o que poucos sabiam, é que grande parte dos moradores da Rua dos Jardins não cuidavam dos seus próprios jardins. O pobre homem solícito era o jardineiro daquilo tudo. Não que fosse sua profissão, mas sim que não queria ver aquela beleza esvair-se aos seus olhos e de todo aquele habitat que a circundava.
O grande voluntário sempre que via um dos jardins sendo consumido pelo descaso corria a zelá-lo. Perdia dias de serviço, não educava seus filhos, não acariciava sua esposa e não retornava as ligações de seus pais. Tudo para que a rua continuasse sempre linda. Quando o dono de alguma casa voltava ao seu lar e encontrava seu jardim impecável sorria para si mesmo, entrava em sua residência com os ganhos do dia de serviço, educava suas crianças, acariciava sua esposa e ligava para seus pais para saber se estavam bem. Por fim, esquecia-se de agradecer ao homem que zelara seu jardim gratuitamente.
Certo dia, numa das faltas rotineiras do pobre homem ao trabalho, seu patrão irritou-se, bateu sua carta de demissão e enviou-a via correio, pois sabia que o infeliz do seu empregado faltante dificilmente atenderia ao telefone. Ao retornar do socorro de mais um jardim, o homem abriu sua caixa de correspondências, encontrou a sua carta de demissão, ao lê-la sentiu-se bem, pois agora teria mais tempo para cuidar dos jardins, inclusive do seu próprio, já que a demanda dos jardins vizinhos aumentará e não sobrava tempo ultimamente para zelar do seu mesmo.
Passaram-se dias e ainda não tinha cuidado do seu jardim, tinha chego ao fim da rua e o jardim do início dela já estava infestado de ervas daninhas. Estava exausto. Resolveu descansar um pouco. Ao chegar em casa, encontrou-a vazia. Sobre a mesa uma carta de despedida da esposa, dizia a carta em letras tremidas - devido o soluço do choro - que sua amada tinha ido embora e levado consigo as crianças, uma vez que não tinha mais a presença do seu esposo para aconchega-la e nem para disciplinar seus filhos. Pensou o homem então “agora sim terei tempo para o meu jardim”.
No outro dia após o abandono, logo que despertou, ouviu reclamações na rua sobre alguns jardins que estavam mal cuidados. Apavorou-se. Muniu-se de suas ferramentas e correu capiná-los. Ocorreu que esses jardins estavam tão invadidos por ervas daninhas que o pobre homem passou dois dias e duas noites capinando. Quando voltou ao seu lar, cansado, entregue, parou diante da secretária eletrônica e apertando o botão de ligar passou a ouvir os recados. Dezenas deles. Todos emergenciais. Queriam saber seu paradeiro. Seus pais haviam falecidos em um acidente. A família queria sua presença no velório. Perdeu a oportunidade de dar o derradeiro adeus a eles. Uma lágrima, arredia, fugiu do canto do olho. Não podendo conter as outras que também queriam sair, sentou-se então na cama e chorou; chorou até pegar no sono.
Ao acordar no dia seguinte, suspirou cansado, olhou ao seu redor, pensou consigo bem calmamente “ainda tenho meu jardim”. Encorajou-se, apanhou suas ferramentas, e decidira que aquele dia seria exclusivo para seu jardim. Ao abrir a porta que dava acesso a ele, o espanto! Não tinha mais nenhuma flor lá! Era tarde demais, o mato tomara conta do jardim. Fugiram-se os beija-flores. Morreram-se as borboletas. Nem abelhas pairavam mais por ali. Ninguém mais interessava-se pelo seu quintal. O pobre homem não tinha mais nada. Nenhum vizinho nunca se importara com o jardim dele.




Mata Boi






João-Mata-Boi, era essa sua graça. Só recepcionava pessoalmente patrões depois do serviço feito e para receber o pagamento. Antes disso, só acertava a encomenda do trabalho e as fotos do boi para matar.

Nunca perdia um serviço.

Outro dia, outra encomenda. Preço acertado. Só faltavam as fotos do boi que iria morrer, seriam enviadas posteriormente.

Dias depois chega a encomenda. João-Mata-Boi abre o pacote para ver as fotos. Recebeu um espelho...

O boi morreu.



Abandono



            Hoje, por uma janela entreaberta olhei o futuro, que todos sabem existir mas fingem não estarem sujeitos a ele.

            Vi pela janela de um modesto quarto de pensão de paredes mofas, de cheiro de coisa velha, onde insetos transitam livres, leves e soltos, que ali habitava um velho negro velho. Como companheiros de quarto do ancião, dois bancos de madeira, desgastados pelo longo tempo de uso. Um dava descanso ao velho, outro perdera a função para a qual fora criado, tornara-se agora uma mesa e guardava um prato de arroz cozido que ia sendo devorado lentamente pelo velho. Aos três habitantes daquele cômodo somava-se uma cama de solteiro, encostada na parede mofada. Sobre a cama um lençol e uma colcha, ambos tão velhos quanto os demais moradores daquele antro de tristeza. Lençol, colcha e cama tornaram-se uma coisa só na desarrumação daquele que deita, levanta, deita e levanta e tampouco se importa de como encontrará seu leito sono ao voltar deitar.

            Eram os únicos seres que existiam ali. Todos velhos, todos esquecidos. 

            O velho negro velho mastigava sem pressa um punhado de arroz que acabara de levar a boca. A única coisa que se movia naquele ambiente de pouca luz era sua boca, mastigava devagar, sentindo o sabor daquilo que talvez fosse o único alimento no seu dia. Enquanto sua mandíbula descia e subia num compasso cansado, seus olhos fitavam a parede mofada. Olhar fixo, sem expressão, olhar em busca de respostas das perguntas que nunca se fez. O canto dos olhos evidenciavam as rugas, herança de um passado indecifrável, passado guardado naquele olhar vazio. Os cabelos brancos justificavam o segundo velho do velho negro velho, uma vez que um negro de cabelos brancos indica o quão velho ele é.

            Vendo aquela cena triste, imóvel pelo temor de tornar-me aquilo, um homem esquecido, pensei: Por que tantos anos? Viver tanto tempo nessas condições não é uma dádiva, é uma severa pena aos que erram. Pena perpétua a ser cumprida num olhar vago. Olhar acalmado pelos anos, que acalmaram também os instintos do velho. O velho que agora mastiga a espera do fim.



Politicamente incorreto







            José da Silva acordou atrasado. Ao invés de escovar os dentes enxaguou a boca com o antisséptico bucal que subtraíra da casa do irmão na última visita que realizou a cerca de uma semana. Abriu a porta do apartamento e recolheu o jornal que o porteiro do prédio colocava todas as manhãs na porta do vizinho de José. Enquanto tomava seu café, lia as manchetes sobre a corrupção que assolava o país. Pensou consigo mesmo: -Idiotas!


            Ao término do seu desjejum, dobrou novamente o jornal e o colocou novamente na porta do seu vizinho. Ajeitou o nó da gravata que comprara com a ajuda de custo para vestimento, pegou sua pasta de couro – que em tempos normais não teria condições financeiras para adquirir – trancou a porta do apartamento. Já estava atrasado. Caminhou rápido a ponto de alcançar o elevador parado no andar do seu apartamento, no fim do corredor vinha também uma mulher grávida, a passos lentos devido o avançado período de gestação em que se encotrava. José estava atrasado, achou justo não esperar a chegada da gestante. Apertou o botão do térreo e o elevador fechou as portas e desceu prédio abaixo.


            No hall de entrada, o porteiro desejou-lhe bom dia, mas seu celular tocou naquele mesmo instante e José não teve tempo de retribuir o bom dia que recebera. Saiu ansioso na calçada que ficava a frente do prédio que morava, nenhum táxi estava parado ali naquele instante, como era de costume. José viu um pouco mais adiante um táxi que havia parado para um senhor aposentado que lentamente abria a porta direita traseira do veículo, José antecipou a entrada do idoso, disse-lhe educadamente que ele tinha um compromisso inadiável e que o senhor já era aposentado e não precisava ter pressa para mais nada, poderia muito bem aguardar o próximo táxi. Embarcou. Ao taxista disse rispidamente que se dirigisse ao Centro Administrativo Político, mais precisamente na Câmara dos Vereadores.
            No trajeto, tiveram um atraso maior devido o congestionamento na Avenida principal de acesso ao Centro Administrativo Político. Ali havia obras de reforma, e as obras estavam atrasadas há alguns meses, pois uma licitação recheada de indícios de corrupção, fez com que a justiça suspendesse algumas vezes as obras para regularização. José pensou novamente e exclamou: - Idiotas! Porque não procuram um caminho alternativo. Pelo retrovisor, o motorista que tinha reconhecido José, deu um suspiro silencioso de indignação.
            Já nas vias de acesso à Câmera dos Vereadores, José descascou uma bala para aliviar o hálito que saía da boca, o asséptico bucal não fora eficiente o suficiente. Entre os bancos do táxi, havia um saco escrito “LIXO”. José tinha aberto a janela da porta direita traseira para aspirar o ar daquele antro de corrupção, aproveitou e jogou pela janela o papel que envolvia a bala que chupava.
            Pediu ao taxista que parasse e enquanto retirava o dinheiro do bolso para pagá-lo, solicitou um recibo de um valor bem acima do que realmente tinha custado a corrida, alegou que era para ser reembolsado no fim do mês. Novamente o taxista suspirou com ar de indignação e preencheu o recibo com três vezes o valor real do serviço prestado.
            José tinha pressa, não queria ser visto por ninguém, entrou pela porta de acesso aos deficientes e utilizou o elevador destinado a eles também. No corredor que desceu, percebeu a presença de algumas pessoas na porta de acesso à sua sala, disfarçou, entrou no banheiro de uso coletivo, dali, ligou para sua secretária, esqueceu de saudá-la e logo, fazendo uso de muitos verbos no imperativo, ordenou à secretária que pedisse as pessoas que se encontravam na porta, que fossem até a recepção buscar um formulário, ela não sabia que tipo de formulário era, e José exclamou: - Idiota! Não percebe que é uma desculpa para que saiam da minha porta? A secretária desligou cordialmente o telefone, se dirigiu aos presentes e inventou uma história qualquer, os presentes entenderam e foram até a recepção seguindo as ordens dela.
            José aguardou ansioso por alguns minutos no banheiro, olhou disfarçadamente o corredor para ver se a entrada da sua sala estava livre, confirmou que sim, caminhou apressado até lá. Entrou rápido, novamente não cortejou sua bela secretária, que por sinal era sua sobrinha, olhou para ela com um olhar nervoso e deixou bem claro que não queria ser incomodado naquela manhã por ninguém, era para dizer que ele não se encontrava. A secretária confirmou com a cabeça que havia entendido.
            José entrou finalmente na sua sala, respirou fundo, colocou sua pasta sobre a mesa, ligou o ar condicionado, sabia que ali estava seguro e poderia prolongar seu sono por mais algum tempo. Rodeou a mesa, sentou-se confortavelmente na cadeira de Presidente da Câmara dos Vereadores e dormiu.


Silêncio




          No canto de um bar, sentado num velho banco de madeira, encosta o cotovelo no balcão grudento, com a mão do mesmo braço, apoia o queixo, ali o peso de toda a cabeça força a mão causando uma dor módica. Mais pesado que sua cabeça, são os pensamentos, tristes, desolados, sem explicação, todos afogados na bebida servida no velho copo americano, embaçado pelo uso diário.

          Num único gole, sorve todo o resto do liquído do copo, não sabe quantos dele consumiu, a vertigem causada pelo álcool já não permite a conta. Olha ao redor, casais, vários deles, todos em trocas afáveis de carícias amorosas. De súbito, a decisão. A nota é deixada no balcão, não importa o troco, importante é partir já, naquele instante.Cambaleante, deixa o estabelecimento.Percorre a rua fria e quase deserta, as costas fica o bar, testemunha do despeito. O caminho não é longo, mas o peso da decisão torna-o. Os passos demorados, pesados, cheios de medo conduzem o corpo ébrio. O medo do imprevisto percorre-lhe a espinha, mas não o faz parar.

          No final da rua, numa linha reta que parte do bar está à casa de destino. Uma parada. O olhar final. A dúvida quanto a sua atitude. Segui-la ou não? O álcool encoraja. Um passo adiante, mais um, um após o outro, chega à porta.

          Na madrugada, o sono profundo e tranqüilo é interrompido. Fortes batidas são ouvidas na porta de entrada da casa, que há pouco fora alvo de um olhar desesperado. Silêncio. Passos denunciam que alguém desce a escada. Passos morosos. Impossível dizer se por medo ou cansaço.

          Um breve mas eterno silêncio acontece ao cessar dos passos.

          A porta é aberta.

          Do lado de fora, balançando, com o olhar cheio de lágrimas, a voz trêmula e insegura diz:
          - Eu te amo! Me perdoa?
          Mais uma vez o silêncio, que dura segundos, mas demora o suficiente para doer o coração de quem espera.
          A porta é fechada. 





Purificação



Abriu os olhos. Sentiu a luz irritante do Sol que penetrava seu quarto pela janela aberta incomodar suas pupilas. Odiou ter que acordar e ver que mais um dia se iniciava. Sentou na beira da cama. Colocou seu rosto entre as mãos e esfregou com força sua face e terminou o movimento puxando os cabelos para trás. Não conseguia entender porque mais um dia começava e sua vida tinha que estar atrelada a ele. Seria tão mais fácil se sucumbisse à vida antes mesmo de acordar. Se não abrisse mais os olhos pela manhã. Levantou-se, caminhou até o banheiro, teve que contemplar pelo espelho aquela figura humana com aspecto deprimente diante de si. Seu rosto inchado, cabelos despenteados, mau hálito, tudo era repugnante naquele ser que habitava, já sem necessidade, esse mundo.

            Ali, diante de si, num olhar frio com o seu eu, tomou sua derradeira decisão, não mais viveria. Não havia motivos para que continuasse a viver. Tudo se perdera, o amor, o trabalho, a família, os amigos. Não que todos haviam abandonado, mas sim que havia abandonado-os.  Então, para que mais um dia vivido? Era hora de por fim a sua vida, saiu do banheiro a caminho da morte e esqueceu de higienizar-se, ou melhor, não fez intencionalmente, qual a diferença de assear-se já que iria morrer.


            Caminhou pela casa. Procurava o objeto com o qual cometeria suicídio. Existiam algumas opções, facas, remédios, cordas, uma garagem e um carro, uma banheira. Opções não faltariam. Mas, o mais deprimido entre os deprimidos não quer sofrimento para extirpar a própria vida. O suicida tem pressa em fechar os olhos. Sempre irá escolher aquele meio mais rápido e que lhe parece menos doloroso. Se é que existe menos dor para morrer.

            Então, para garantir que a velha Senhora de manto negro entrasse naquele lar por aquela manhã. Amarrou nas vigas da sala uma extremidade da corda, e na outra fez um laço, abaixo da corda pendurada colocou uma banqueta de madeira que ajudaria o pescoço a alcançar sua carrasca. Ainda para garantir que nada falhasse, carregou consigo uma faca. Subiu na banqueta, passou a cabeça pelo laço da corda, antes do salto, empunhou fortemente a faca com a mão esquerda e passou-a no pulso da mão mais forte. Queria impedir um arrependimento posterior. Quando as primeiras gotas de sangue afloraram no pulso, deu uma longa aspirada e saltou.

            A corda, mal acomodada, prendeu-lhe numa linha diagonal que ia do queixo à orelha, não causando assim o asfixiamento, tão pouco lhe quebrou o pescoço. A banqueta havia tombado em virtude do salto. Não tinha ali um sustento para retornar a posição inicial e reiniciar o rito de caminho à morte. Seu pulso cortado, sangrou bem, mas não o suficiente para esgotar totalmente a seiva humana. O corte não atingira veias e artérias importantes. O corte intencional, só fez tirar as forças da mão que podia agarrar a corda e buscar uma fuga daquela posição incomoda.

            Ali, naquela sala, balançou o corpo por um longo período, até que a força da gravidade fizesse o pêndulo humano apontar o centro da terra. As pernas ainda tentavam alcançar algo, mas não tinha nada mais próximo senão o chão que estava distante quase um metro do corpo suicida.

            Não podia gritar, seu queixo estava preso com a corda, que lhe apertava devido peso corporal. Seus olhos buscavam uma solução. Sua mão que não tinha corte não possuía força suficiente para erguer-lhe. Tentou. Mas ela não tinha. Quem sabe se tivesse conseguido, acomodaria melhor a corda ao seu pescoço e provocaria assim o sufocamento desejado.

            Horas passaram-se. Não havia solução. A morte negou sua visita a essa casa. Ninguém visitaria essa casa. Todos foram deixados de lado em outros momentos da vida. Não retornariam a um lugar que não eram bem vindos. Veio a vontade de chorar, mas foi um choro silencioso, só de lágrimas, não podia soluçar. Nem esse direito tinha mais. Veio a sede, mas não poderia beber. Veio a fome, mas não teria como comer. Todas as necessidades humanas surgiram, então, se urinou, se defecou e, agora podia sentir o fedor dos excrementos humanos. Estava ali uma massa pendurada de excremento. Chorou novamente. Novamente em silêncio. De cansaço e fadiga, dormiu.

            Tempos depois, despertou. Talvez estivesse sonhando, mas não, era um pesadelo mesmo, um pesadelo real. Seu corpo ainda pendia no meio da sala. O Sangue atraíra moscas, que pousaram na poça de sangue no chão, que pousaram no pulso cortado, e em ambos, puseram seus ovos...
            Já era fim de tarde. Ninguém. Ninguém sentiria falta daquela pessoa suicida. E eis que surge a esperança de continuar a viver, mesmo em quem a perdeu a ponto de querer ceifar a própria vida. Mas Deus é o juiz justo. Não nega as suas ovelhas que caminhem pelo livre arbítrio.  E Ele, todo poderoso, não impediria que o infante a suicida atingisse seus desejos. Só deixaria, que o sofrimento, purificasse a alma pecadora.
            E chegou à noite. Um novo sono. Não era ainda o sono dos justos. Nem o sono do repouso. Era o sono do sofredor. Dormiu e acordou. Dormiu e acordou. Ali, naquela sala, dia e noite perderam sua real distinção, e as horas eram incalculáveis, mas eram longas. Notava-se somente o clarear e o escurecer. Mas que adianta saber disso, se não há para onde ir. E passaram-se mais de um dia e mais de uma noite, e o corpo, ainda vivo ali pendia. No pulso nasceram os vermes, pois ali havia alimento para eles, na poça do chão, os ovos não eclodiram. Aquela pessoa que ali encontrava-se começou a sentir sua carne ser devorada, sentia cada abocanhada que aqueles vermes davam em seu corpo ainda vivo, sentia eles avançando mansamente braço acima, e medida que cresciam, outras moscas depositavam mais ovos na fonte de alimentos para suas proles fartarem-se ao nascer. Um cheiro de podridão humana começa a tomar conta daquele ambiente. O corpo vivo, a mente viva, ambos sem forças devido a ausência de água e alimentos, não tinham mais ânimo para lutar contra aquela sociedade de vermes.
            No mesmo espaço de tempo, outros seres vivos surgiram em busca de sustento. Baratas passeavam o corpo daquela criatura infortuna, percorriam orifícios e entravam-lhe roupa adentro. Ali também surgiram ratos. Não que fosse seu alimento favorito, mas era alimento, e já não aguentando mais de anseio, depois de dois dias e duas noites, alcançaram o morto-vivo pela corda, cheiraram, cheiraram, lamberam a carne exposta pelos vermes, e na ânsia diante da fome, um primeiro rato provou a carne humana. Os demais que observam o ousado da sua espécie, inquietaram-se, queriam também provar. E num instinto animalesco, também provaram do corpo humano.
            Aquele ser humano que ali pendia, provou mais uma forma de dor. Sua única atitude foi cerrar os dentes uns contra os outros. Nem mesmo gritar cabia-lhe. Seus olhos, ainda conseguiram soltar mais uma lágrima mesmo depois de tanto tempo sem a ingestão de uma gota de água. Seus pensamentos voltaram-se ao arrependimento, foram tantas perguntas sem respostas, mas encontrou uma, não deveria ter desistido da vida. Sucumbiu as mordidas dos ratos e vermes. 


Algodão doce




        Quantas vezes desejei subir ao céu e estar no meio daquele monte de algodão doce que pairava sobre mim. Eles pareciam saborosos e ainda mais gostosos quando tomavam formas. Era eu sentado debaixo da velha mangueira, deixando as horas passarem e deliciando os picolés de algodão doce, as maçãs de algodão doce, a roscas de algodão doce e outras tantas gostosuras que minha mente criava.

        Foram tantas horas prazerosas que passei com minha fértil imaginação vendo aquele monte de algodão doce no céu, que minha infância parece ter voado no tempo, quando dei por mim já era um adulto velho e chato.

        Hoje não tenho mais tempo para imaginar tantas formas para aquele montante de algodão doce que ainda paira no céu. Hoje cortaram a velha mangueira que me dava sombra para descansar enquanto sonhava. No lugar dela construíram um prédio.

        Muita coisa mudou desde minha infância, desde meus devaneios. O tempo que já quase não tenho, fica a cada dia mais escasso, mal dá para olhar o céu. Mas hoje, bem hoje, olhei para ele rapidinho. Não vi forma alguma no algodão doce. O desejo de subir e estar no meio daquele monte de algodão doce ainda continua. Só fiquei triste por um detalhe, pequeno, mas importante, detalhe que separa a mente de uma criança da mente de um homem...hoje eu sei que aquilo não é algodão doce.





Insatisfação





      Hoje o céu foi generoso.

      Choveu o dia todo.


      Estava no ponto de ônibus a esperar a próxima condução que me levasse para perto de casa e comecei a atentar-me a conversa de dois velhinhos, aposentados que eram, já tinham deixado dois outros ônibus passarem, mas aproveitando-se da sua condição de pessoa idosa, sempre pediam a vez da fila, talvez só para mostrar que existiam. Ainda!

      Eles reclamavam de como chovia nesse dia.

      Quando percebi o teor da conversa. Lembrei-me do dia anterior. No mesmo horário, no mesmo local, na mesma condição de espera, duas mulheres, reclamavam do sol que fazia.

       Entendi então!

       É do ser humano reclamar.

       Aquelas duas que reclamavam do sol ontem, tenho certeza que estão a reclamar da chuva de hoje. E como elas, os dois velhinhos que reclamam da chuva hoje, reclamaram do sol de ontem.

      Talvez caía flores do céu amanhã, e alguém irá reclamar. Talvez reclame que as flores sujam o chão, e nem lembrará que reclamou no dia anterior de como elas, tão belas nas árvores, atríam insetos.
      Acho que vou reclamar.
      Nem sei bem porque, mas vou.
      Acho que reclamarei que gosto demasiado da chuva, ela traz vida demais.
      Acho, que depois de reclamar da chuva, reclamerei do sol que irradia logo depois da partida da chuva, ele traz vida demais.
      Aliás, acho que reclamarei de todas as estações, assim serei justo. Reclamarei do verão, do outono e do inverno, reclamarei da primavera também, são flores demais.
      Não sei porque reclamarei.
      Reclamarei.
      O que me insere, é reclamar.

  

Os loucos daqui




             Outro dia, em uma roda de amigos, nos pegamos falando dos loucos dessa cidade.

            Começamos a rir das atitudes de cada um deles, referindo-nos a eles pelas manias que possuem. Tem cada uma que não tem como não rir.  Tem o “Bebe água”, que faz isso mesmo! Bebe água, mas não é uma água qualquer, pelo jeito ele adora aquela que escorre pelas ruas. O “Pede cigarro”, que vive a serrar cigarro de todo fumante que topa com ele pelas ruas, e olha que ele sempre carrega no bolso da camisa uma carteira de cigarros. O “Bate braço”, esse se abana o tempo todo com os braços, o problema é saber se ele está se abanando ou se batendo, com a força que ele faz, parece bater-se, mas se levarmos em conta o calor daqui, parece abanar-se. Bom! De qualquer forma é engraçado vê-lo se... se... sei lá o que. Vai entender um louco! Tem também o “Engraxate”, anda o dia todo com uma caixa de engraxate nas costas, se ele engraxa o sapato de alguém? Nunca vimos... dizem que ele é muito bom jogando sinuca. Ta aí! Talvez seja mais rendoso jogar sinuca do que engraxar sapatos. Agora imaginem: louco, engraxate e sinuqueiro. Até onde vai essa loucura hein? Estavámos  nos esquecendo do “Sabonete”, ex-louco, depois que tomou um tiro sarou... e sabonete de onde vem? Só pode ser do cheiro... tem outra ideia melhor?


            Depois de muitas risadas, pus-me a pensar sobre o que somos, ou melhor quem somos. Não somos um nome. Somos o que mostramos aos outros. Somos o que temos e o que não temos.

            Eu, o que sou?

            Você, o que é?




Sítio Cotão



            Da herança repartida, fez-se cinco pedaços de chão. Cada irmão recebeu seu parmo de terra.
            Seu Justo ficou no meio dos outros quatro irmãos. Todos criavam boi. Cada um tinha um casal de uma raça exótica, pois os bois naturais daquela região tinham sido extintos quando desbravaram aquele matão. Seu justo não tinha uma raça apurada, criava um casal mestiço, fruto dos anos da mistura de várias raças que tornavam muito belos aqueles animais.
            Certo tempo um dos irmãos desistiu de criar gado. Doou seu casal de bois branquinhos para Justo. Seu Justo, homem que se achava conhecedor, acreditando que aqueles animais branquinhos deveriam ficar junto as árvores, pois seu coro não resistiria a tanto sol, dividiu a propriedade dando aos branquinhos o canto que tinha árvores para proteger o casal de animais do sol.
            Passado um tempo, outro irmão entregou a Justo seu casal de bois negros. O sábio sitiante, governador de seu rebanho, pensou que devido a cor negra do couro daqueles bois, não haveria problema deixá-los na parte que o sol queimava de pino a pino pois devido a cor do couro deles o sol não queimaria. Fez novamente outra divisão, apertando ainda mais os bois mestiços, e lá estava o casal de bois negros no seu canto sem árvores.
            Desanimado dos percausos da vida, lá vem o terceiro irmão arrastando seus bois gordãos, eram tão grandes que esse irmão não sabia mais o que fazer com os bois. Sabendo que seu irmão Justo era um grande conhecedor de bois, resolveu doá-los a ele. Justo, todo feliz, orgulhoso da sua sabedoria, decidiu reservar o local que passava o rio para os gordãos, assim eles poderiam banhar-se a vontade e não sofreriam tanto com toda aquela gordura acumulada sob a pele. Mais uma divisão e a coisa foi se afunilando para os mestiços que tanto se refrescaram naquelas águas mansas do pequeno riacho.
            O quarto irmão convenceu-se também que não era o homem mais indicado para cuidar dos seus bois de-pernas-longas. Laçou-lhes o pescoço e na porta do Seu Justo entregou-os ao irmão. Que fazer? Pensou o sabichão. E onde o capim crescia mais alto, seis fios de arame e meia dúzia de lasca, fizeram a repartição.
            Antes de cercar a parte dos bois de-pernas-longas, pensou Seu Justo que não mais precisava do seu velho casal de mestiço. Tinha animais de pura raça, e em que lhe serviriam bois sem raça. Passou a mão na peixeira e em alguns golpes lotou de carne sua cozinha.
            Passaram se os dias, eis que nada sabe aquele que pensa que sabe. Os bois branquinhos estavam ainda mais branco, pois ficavam o tempo todo na sombra, com isso adoeceram porque precisavam do sol para viver. Precisavam também da água dos bois grandãos, do bom capim dos bois de-pernas-longas. Da mesma forma adoeceu também o casal de bois negros, pois de tanto ficar no sol, seu coro tinha enchido de bolhas e ainda não tinham a água para se refrescarem nem a sombra para se abrigarem do sol, para piorar, no seu pedaço a grama mal crescia porque era constantemente torrada pelo sol. Pensam que os bois de-pernas-longas estavam bem? De tanto que comiam, engordaram e passaram a sentir muito calor também e como gordura dá calor, a água não tinham, muito menos tinham a sombra para se abrigarem. Não esqueçamos do casal gordão. De tanto ficar na água,os pobres animais estavam perdendo a cor, precisavam de um solzinho para se secar, mas lá no sol queimavam os bois negros, também tinham emagrecido pois a grama às margens do riacho não era das melhores.
            Seu Justo já não sabia mais o que fazer para resolver o problema dos seus animais. Pensou, pensou e nada de ter uma boa ideia. Certo dia resolveu procurar um vizinho que criava todo feliz um rebanho inteirinho de tudo quanto era raça. O pequeno homem, numa simplicidade incontrável, que nunca se julgou sábio, carregava consigo a opinião de todos que ouvia e que jamais se importou com as particularidades dos seus animais, ensinou ao velho Justo que nenhum animal é diferente do outro. Todos devem ter o mesmo tratamento e ter direito em acessar de forma igualitária todos os recôncavos da propriedade. Disse ainda o pequeno homem, que tratar com diferença os diferentes só serve para confirmar as diferenças e se elas forem ignoradas os animais aprenderão a conviver pacificamente com elas.
            Após ouvir todas as dicas do pequeno homem, Seu Justo rumou para sua pequena propriedade, de machado nas mãos, colocou no chão toda aquela cerca que fora ali colocada sem razão.
            Passaram-se dias, meses, anos. Ali, naquele pedaço de chão, boi puro não há mais não. Todas se misturaram e numa mestiçagem danada vivem a dar risada.
           





Burra Véia e os Folhas Branca






Homenagem a uma aula de linguística

Lá. Bem lá naquele canto de Mundo. Onde o vento, cansado, pára e respira ofegante, recuperando as energias para dar as pernas a sua jornada.
Lá. Bem lá mesmo. Burra Véia era dona do saber. Professora de todo Folha Branca que nascesse naquele lugar. Todo morador, os Folhas Escrita, já tinha provado do seu margor didático. Burra Véia não comedia maldade para incutir nos pobres Folhas Branca a tabuada, o bê-a-bá ou qualquer outro assunto que servisse para preencher suas laudas brancas.
Ali. Ali mesmo, a dona do saber, sabia tudo, aí de quem duvidasse das suas palavras. Contestar, não-não, proibido! Pobres Folhas Escrita, suas linhas foram escritas com as verdades de uma pessoa só. E assim, ao longo dos anos a burrice se confirmava naquele canto de Mundo. De Folha Branca inducado a Folha Escrita malducado.
Ali. Ali mesmo, numa aula sem fim, Folhas Branca ouviram da Burra Véia “queridos aluninhos escrever errado não tem problema algum, o que não pode nunca é escrever com caligrafia feia.”   
Aula dada. Folhas Branca com linhas escritas mas brancas. Burra Véia orgulhosa, toda orgulhosa da sua sabedoria.

Sílvio